Questionar um “mamarracho” ou envolver a comunidade migrante com a ajuda de tachos e receitas, são apenas duas das premissas dos 25 microprojetos de arte participativa, desenvolvidos no âmbito do programa ATOS, criado pelo Teatro Nacional D. Maria II e Fundação Calouste Gulbenkian.

Foi em 2023 que o Teatro Nacional D. Maria II e a Fundação Calouste Gulbenkian criaram o programa ATOS com um objetivo bem determinado: plantar, por todo o país, sementes de práticas culturais e artísticas de participação. Descentralizar a arte e a cultura, envolver cívica e artisticamente as comunidades, ou ampliar o alcance das iniciativas democráticas de cultura, foram alguns dos objetivos do programa que percorreu continente e ilhas.
Hoje, dois anos depois, o ATOS continua a estar presente em todo o país, agora com novas ações, mas com a mesma intenção: lançar sementes e nutri-las, com a ajuda de mentores da área das práticas artísticas participativas, para que seja possível capacitar microprojetos locais – 25 no total – selecionados por concurso em cada um dos municípios parceiros: Funchal, Lamego, Loulé e São João da Madeira.
Até final do ano, espera-se que todos estes microprojetos germinem no tecido cultural da sua região, contribuindo para o cultivo da relação da comunidade com a arte, cultura, reflexão e cidadania.
Clique e conheça 4 dos 25 microprojetos
Iluminar o caminho até ao coração do bairro
Maria Beatriz Pinto ainda tem bem presentes os lamentos da avó, quando esta constatava que a iluminação das festas de Lamego não chegava à rua onde habitava, uma das que conduzia ao Bairro da Ponte. “Pode parecer um detalhe, mas a ausência destas ‘gambiarras’ fazia os moradores sentirem-se afastados da cidade, como se não fizessem parte dela”, afirma a responsável pelo projeto “Gambiarras”.
Como tal, a ideia surgiu da intenção de “trazer novamente luz ao bairro”, o que passa por voltar a colocá-lo no “mapa afetivo e cultural de Lamego”.

Maria Beatriz Pinto
Este projeto, selecionado no âmbito do programa ATOS, concretiza-se através de uma exposição fotográfica comunitária ao ar livre, a acontecer no largo principal do bairro, reunindo fotografias do arquivo pessoal de moradores e ex-moradores. As fotografias serão penduradas em fios entre os postes de luz – daí o nome do projeto – e no dia da inauguração haverá uma projeção noturna com excertos de vídeos antigos e testemunhos recolhidos em entrevistas.
Maria Beatriz Pinto refere que a recetividade dos habitantes “foi surpreendente”, revelando-se logo quando lhes bateu à porta para recolher as suas histórias, o que lhe permitiu também reencontrar-se com pessoas que a conheciam desde pequena.
A Inauguração do “Gambiarras” está agendada para dia 8 de novembro, às 16 horas, no Largo do Chafariz, Bairro da Ponte, em Lamego.
“Mamarracho” versus cascata
À beira da belíssima Queda do Vigário, famosa cascata localizada na aldeia de Alte, concelho de Loulé, encontra-se um inusitado edifício, que os habitantes locais apelidam de “mamarracho”. O nome diz tudo e, como referem Tiago M. C. de Sousa e Giovanna Cordennuzzi Garcia, cocriadores e mediadores do projeto, “ilustra precisamente o contraste entre o espaço construído e o espaço natural a ser preservado”. Daqui ao “àmonstra” foi um passo, tendo este projeto surgido da necessidade de intervir no espaço público de forma participativa. Para tal, desde o início de setembro que tem vindo a ser estimulado o diálogo com as entidades públicas, de forma a mostrar que a sociedade civil, quando se organiza, “consegue o que necessita”, salientam.

Tiago M. C. de Sousa

Giovanna Cordennuzzi Garcia
Entre as críticas apontadas pela população ao “mamarracho”, destaca-se, por exemplo, a escolha dos materiais, alguns dos quais dificultam a utilização do espaço, como é o caso dos bancos em metal, que nos meses de verão ficam demasiado quentes para serem usados.
Segundo os responsáveis, através de encontros em torno do edifício, sob a forma de debates, partilhas e atividades coletivas abertas a todos, como a recolha de lixo, tem vindo a promover-se o que esperam ser uma “participação de qualidade”.
No dia 2 de novembro, às 11h30, haverá uma partilha pública deste projeto, em formato de piquenique e conversa em torno do “mamarracho”.
A comida como elemento de aproximação
Sabendo que “a comida e o ato de partilhar uma refeição em conjunto propiciam a proximidade, o afeto e o cuidado pelo outro”, Miguel Almeida e Mariana Salgueiro Rocha foram para a cozinha e criaram “O que é o tacho?”.
Em causa está um projeto artístico e comunitário, que faz da cozinha um lugar de partilha e afirmação cultural, e que, na prática, promove encontros com famílias migrantes e não migrantes residentes em São João da Madeira. “Com este projeto, queremos celebrar a diversidade cultural que existe em São João da Madeira, derrubando fronteiras e criando lugares de proximidade e resistência”, afirmam.

Miguel Almeida e Mariana Salgueiro Rocha
A dinâmica do projeto é muito simples e original, passando por uma identificação prévia de possíveis participantes. Posteriormente, os responsáveis estabelecem contacto com cada família e, entre todos, combinam uma data e uma receita à escolha. No dia e hora marcados, Mariana Salgueiro Rocha e Miguel Almeida deslocam-se à casa da família respetiva, levando consigo os ingredientes necessários e aí “é criado um tempo e um lugar de partilha”.
Além disto, todos os encontros são ilustrados ao vivo por Sofia Neto, também ela de São João da Madeira. Os desenhos, juntamente com as receitas e outros apontamentos escritos, irão integrar uma publicação impressa, destinada a materializar os momentos de partilha vividos.
No dia 22 de novembro, a partir das 18 horas, no Espaço Vida, haverá um momento público, com as referidas publicações disponíveis, bem como uma exposição e comida para partilhar.
Questionados sobre a relevância do programa ATOS, Mariana Salgueiro Rocha e Miguel Almeida destacam sobretudo a “dimensão de envolvimento cívico e artístico das comunidades”, já que o programa “garante que a cultura não é apenas algo a que se assiste, mas um espaço de participação ativa”.
No seu entender, “este aspeto é fundamental para reforçar laços comunitários, fomentar o diálogo intercultural e valorizar a diversidade de vozes presentes no território”.
Sublinham ainda “o objetivo de descentralizar a cultura”, bem como “a aposta em capacitar e produzir conhecimento sobre práticas culturais e artísticas de participação, com formações, uma vez que este investimento estimula a continuidade dos projetos”.
Opinião idêntica é partilhada por Tiago M. C. de Sousa e Giovanna Cordennuzzi Garcia, que realçam também o acesso às mentorias e formações sobre práticas participativas.
Com esse contributo, reconhecem que conseguiram criar “um projeto justo que ouça a população envolvente e as pessoas que pretendem usufruir do espaço”, referindo-se ao edifício anexo à Queda do Vigário.
Além disso, apontam como positiva “a possibilidade de fazer uma ponte com outros projetos e criadores que atuam em campos semelhantes na mesma localidade e com formadores e mentores com projetos de destaque no panorama nacional”.
Fazendo eco das mesmas palavras, Maria Beatriz Pinto valoriza a descentralização e capacitação permitidas pelo ATOS, salientando que projetos participativos deste tipo “criam pontes, dão voz às comunidades e geram pertença, lembrando-nos que a cultura deve ser de todos e para todos”.
No mesmo sentido, Beatriz Jardim sublinha “a possibilidade de aproximar comunidades que historicamente estiveram afastadas destes processos, não apenas como espectadores, mas sobretudo como protagonistas no processo criativo”. Destaca também a mentoria e capacitação fornecidas, “porque não se trata apenas de financiar projetos, mas de acompanhar percursos, partilhar ferramentas e refletirmos em conjunto”, justifica.
De salientar que, até dezembro, os 25 microprojetos selecionados desenvolvem-se em várias localidades dos quatro concelhos parceiros do ATOS. Além disso, até final do ano, o programa desenvolve-se igualmente no concelho de Évora, com o projeto “Entre Nós”, criado pelo coletivo ondamarela. Em causa está um laboratório de experimentação em práticas artísticas participativas, dirigido a profissionais, estudantes e amadores desta área, que assenta na troca de conhecimentos, metodologias e saberes.
Em Lisboa, entre outubro e dezembro, decorre a formação “Criação de Projetos Artísticos Participativos”, um programa de média duração, composto por dez módulos e dirigido a artistas, mediadores e estudantes que pretendam especializar-se na criação e implementação de projetos artísticos participativos.
Um projeto comercial RTP Marcas e Teatro Nacional D. Maria II










































